"A boca, no papel" de Drummond


Uma boca pode despertar os sentimentos mais primitivos em uma pessoa. Já ouvi elogios a minha, mas não dei muito crédito, pois achei que ela tinha terceiras intenções. Terceiras, pois as segundas cheguei a conhecer. Fato é que seja a da Angelina Jolie ou a do Boris Casoy, a boca já foi tema de redação. Drummond falou sobre isso no texto que segue o fragmento abaixo.


A boca, no papel

Carlos Drummond de Andrade

O garoto da vizinha me pediu que o ajudasse a fazer (a fazer, não, a completar) um trabalho escolar sobre a boca. Estava preocupado porque só conseguira escrever isto: ‘Pra que serve a boca? A boca serve para falar, gritar e contar. Serve também pra comer, beber, beijar e morder. Eu acho que a boca é um barato’. Queria que eu acrescentasse alguma coisa.
_ Que coisa?
_ Qualquer coisa, ué. Escrevi só quatro linhas, a professora vai bronquear.
_ Mas em quatro linhas você disse o essencial. Para mim, só faltou dizer que a boca serve também para calar. Em boca fechada não entra mosquito.
_ Isso não dá nem uma linha _ e os olhos do garoto ficaram tristes. _ Por favor, me ajude...
Então resolvi fazer a minha redação, como aluno ausente do Colégio Esperança, e passá-la ao coleguinha, a título de assessor de emergência.


Boca



A boca! Tanta coisa podemos falar sobre a boca, mas é sempre por ela que falamos dela. Até caneta e o lápis são uma espécie de boca para falar sobre a boca. Eles vão riscado e saem as palavras como se saíssem por via oral. (Risquei a expressão “por via oral”. É muito sofisticada, ninguém vai acreditar que fui eu que escrevi. Mas foi sim.)
A boca é linda quando é de mulher que tem boca linda. Fora disso, nem sempre. A boca é muito rica de expressões, mas não se deve confundi-la com a chamada boca rica. (Mordomia, negociatas, pregão de ações da Vale do Rio Doce aos milhões etc.) A boca de que estou falando, aliás, escrevendo, pode ser alegre, amarga, ameaçadora, sensual, deprimida, fria, sei lá o quê. Uma boca pode variar muito de expressão e mesmo não ter nenhuma. Uma das bocas mais gozadas que eu já vi foi a boca–de-chupar-ovo, uma boquinha de nada, da minha tia Zuleica. Se fosse um pouquinha mais apertada, eu queria ver ela se alimentando – por onde? Mas esta boca está fora da moda, só aparece no jornal nos retratos das melindrosas de 1928, que faziam a boca ainda menor desenhando o contorno com o batom. Os lábios ficavam de fora, de longe.
Estou lendo escondido as poesias de Gregório de Matos. Dizem que ele tinha o apelido de Boca do Inferno por causa dos negócios que escrevia e que eram infernais. Infernais no tempo dele, pois na rua e em toda parte já escutei coisas muito mais cabeludas, xii!...
Toquinho canta uma letra que fala em boca da noite, acho que ele queria falar no anoitecer, É bonito,mas não consigo imaginar essa boca na cara da noite. Sou mais a boca do dia, que não sei se alguém já teve idéia de falar nela, mas o amanhecer engolindo a escuridão da noite é mais legal que o anoitecer papando os restos do dia.
Boca por boca, não ando atrás da boca-livre, que aliás nunca passou perto de mim, e só um grupo consegue, os privilegiados. Se a boca fosse livre para todos, então a vida seria melhor. É a tal história: quanta gente fazendo boquinha pra conseguir o quê? Nada. E com quatro ou cinco bocas em casa pra sustentar.
Diz-se que o uso do cachimbo faz a boca torta, e eu pergunto: por que não botar o cachimbo ora no outro canto da boca, pro torto endireitar? Se o vatapá põe a gente de água na boca, me expliquem por que , depois de comer , o cara pede um copo d’ água.
Gente que não admite discussão nem leva desaforo para casa manda logo calar a boca. Mas já vi gente dando palmadinha na própria boca e dizendo “Cala-te, boca”. E ela obedece . Às vezes já é tarde, a boca disse uma besteira inconveniente , e o jeito é o cara se lastimar , com cara de missa de sétimo dia : “Ai, boca, que tal disseste”!
E assim , de boca em boca, vai correndo o dito maldito. Me disseram que um cara bom de discurso, palavreado fácil , como certos deputados e prefeitos por aí, merece o título de boca de ouro. Fala tão bonito que a gente vê barrinhas de ouro saltarem da língua dele. Mas é só de mentirinha. Esse ouro não melhora a sina do povo nem a nossa dívida externa, que é uma boca larga imensa, engolindo todas as reservas da gente. E contra essa história de inflação, custo de vida e tal e coisa, nem adianta mesmo botar a boca no trombone. Os de lá de cima fazem boca-de –siri- ou , senão, boca de defunto , porque, como advertia o saudoso Ponte Preta , siri , mesmo sem boca , já está falando.
E eu faço igual , além do mais porque já não estou em idade de fazer redação em colégio.
ANDRADE ,Carlos Drummond de .Moça deitada na grama.Rio de Janeiro:Record, 1987. p.17-9.

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