A tristeza do primeiro gol perdido



Na época em que eu contribuía com minha sabedoria força física para o engrandecimento do país, lia muito mais jornal. Isso por que o escritório assinava o jornal que diz não ter havido ditadura no Brasil. Me deliciava com as crônicas esportivas de José Roberto Torero, um santista que sabe bem como relacionar literatura com futebol. Um de seus textos, que usei numa avaliação sobre modalizadores de discurso, polifonia, intertextualidade é esse que trago no post. Leia-o e pare de ver pornografia na internet.

Velhos amigos, Barba e Cabelo se encontram todo sábado à tarde, pontualmente às 17h, em sua mesa de sempre no Bar Rigão.
Barba trabalha numa fábrica de amortecedores, Cabelo é advogado. Barba tinha esse apelido porque quando tinha 20 anos tinha uma espessa barba. Cabelo, porque aos 20 tinha cabelos compridíssimos.
Agora os dois têm 40. Barba não têm mais barba, e Cabelo não têm mais cabelo. Mas Cabelo tem barba, e Barba, cabelo.
Barba chegou primeiro. Doze segundos depois, chegou Cabelo. Estavam ambos cabisbaixos, com grandes olheiras. Cumprimentaram o garçom com um rápido aceno de cabeça. Barba pediu:
"Um rabo-de-galo, Durval Hoje eu quero encher a cara!"
"Pra mim também. E duplo!"
Barba e Cabelo olharam-se meio desconfiados, assustados com a coincidência. Barba, para quebrar o gelo, iniciou uma conversa. "Meu amigo, aconteceu-me um desastre!"
"Empatou! Para mim, também aconteceu um desastre. Aliás, desastre não. Catástrofe!", respondeu o exagerado Cabelo.
"Não fiz, cara! Eu, Barba, não fiz! Pensava que isso nunca fosse acontecer comigo..."
Cabelo arregalou os olhos e teve que disfarçar um engasgo com o primeiro gole da bebida. "Contigo também? Que coincidência..."
"Ontem à noite, velho."
"Pode um negócio desses?! Foi ontem à noite comigo também!", exclamou Cabelo em voz alta.
"Falhou?", perguntou Barba.
"Falhei..", respondeu Cabelo.
"Não conseguiu?", perguntou Barba. "Não...", respondeu Cabelo cabisbaixo. Durval sem que os dois precisassem pedir, trouxe mais dois rabos-de-galo.
"É duro!", comentou Barba.
"Antes fosse...", rebateu Cabelo,
"Eu não entendo! Não podia acontecer!", disse Barba, com voz de choro. "Ela estava ali, parada, me esperando!... Eu vim firme, dei aquele impulso e fui com tudo! Sei lá, faltou concentração."
u0h, meu Deus, nem fala!", emendou o amigo, já com os olhos mareados. "Dá um desconsolo na gente que não é fácil. Eu nem peguei no sono depois."
"Eu nunca tinha falhado, Cabelo, nunca." "Nem eu. Foi minha primeira vez. Quase chorei."
"Cara, eu fiz tudo como manda o figurino. Fui lá, olhei para ela, ajeitei com carinho..."
"Elas gostam dessas frescuras, Barba. Tem que fazer." "Pois eu não fiz, Cabelo? Tudo dó jeito de sempre! Aí, concentrei-me, fui com tudo e mandei bala. Mas..."
"Eu sei o que é isso, eu sei... Eu também nunca tive problemas, mas na hora H as pernas bambearam, deu uma tremedeira, e lá se foi Pfiu. Eu não me conformo,
eu não me conformo!"
Os copos já estavam vazios. Após um breve silêncio, Cabelo deu um profundo suspiro e continuou: "È, meu velho, o tempo chega para todo mundo..."
"Acaba apontaria..."
"Aforça..."
"A impulsão..."
"A capacidade de recuperação..."
"O fôlego..."
"0 poder de penetração..."
"É.., futebol é fogo, Cabelo."
"Peraí, Barba! Futebol?"
"É. Tô falando do pênalti que perdi ontem na final do campeonato da fábrica. Primeira vez!"
"AhL,pênalti,é?"
"Claro! Do que você pensou que eu estava falando?"
"Deixa pra lá, Barba..."
Durval, sem ninguém, pedir, trouxe mais dois rabos-de-galo.


Contextos fazem conversas inocentes tornarem-se absurdas, não?

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